segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Jornal O POVO 04/04/2000

    1981. Foi um ano importante para Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier. Melhor: para os que admiravam o trabalho do médium brasileiro. Depois de uma campanha lançada por muitos espíritas conhecidos publicamente - atores, diretores, produtores de televisão e teatro - Chico Xavier fora indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Sedimentava-se ali o reconhecimento ao trabalho em nome dos pobres e necessitados desenvolvido por ele. No meio daquela torcida eufórica, um grupo de espíritas cearenses realizou uma caravana a Uberaba, Minas Gerais, onde Chico Xavier vivia e trabalhava incansavelmente. O jornalista Fenelon de Almeida, do O POVO, viajou durante alguns dias com o grupo num ônibus Expresso de Luxo. Seria uma permanência relâmpago em Uberaba, como o próprio repórter escreveu: apenas dois pedaços de dia. O resultado foi publicado em quatro dias de edição do O POVO, entre 6 e 9 de setembro daquele ano. Na primeira reportagem, Fenelon de Almeida explicou o que viria a seguir: "Um quadro vivo do Chico Xavier que eu vi e conheci em Uberaba, e a sua palavra mansa, lúcida e inédita a respeito dos temas por mim abordados durante nossa entrevista". O grupo acompanhou, por exemplo, uma maratona de 15 horas consecutivas de atividade de Xavier. E o trabalho de psicografia realizado sem parar durante quase três horas seguidas. Os cearenses também viram uma reunião num subúrbio distante da cidade, onde Chico Xavier ia pregar o Evangelho e levar ajuda material a pobres favelados, distribuindo alimentos, roupas e brinquedos para as crianças. Também psicografou autores cearenses, como Lívio Barreto, Quintino Cunha, Juvenal Galeno e Leonardo Mota. A entrevista reeditada hoje foi publicada no último dia da série e coincide com os 90 anos do médium, completados no último domingo. Nela estão algumas das idéias de Chico Xavier sobre a paz, justiça social, doação e, evidentemente, Espiritismo. O médium se saiu de algumas perguntas com humildade - "na posição de uma formiguinha".

    A idéia do Prêmio Nobel da Paz para Francisco Cândido Xavier foi uma bandeira de repente hasteada por um grupo de amigos do humilde e extraordinário médium espírita-cristão, desde o início empunhada por apreciável parcela do povo brasileiro, que cerrou fileiras e fê-la conduzir, triunfante, por intermédio de um seu representante (o deputado Freitas Nobre), até a sede do Instituto Nobel, em Oslo, na Noruega. Ali ela continua a tremular, sacudida por uma simpatia que já não é somente dos filhos do Brasil. Outros grupos humanos, deste e do outro lado do mar, também já se manifestaram a favor da idéia, formando um coro de milhões de vozes que se alteiam, uníssonas, em idiomas vários e em todos os quadrantes da Terra - na Argentina, no Chile, na França, em Portugal na Espanha, na Inglaterra, na Alemanha, na Itália, no Canadá, no México e em outras nações das Américas, da Europa, da Ásia e da África - todas batendo palmas à idéia e aderindo ao desejo manifestado pelos dois milhões de subscritores brasileiros e da candidatura do Chico.
    Não é à-toa a indicação do nome do médium de Uberaba para o Mundial da Paz 1981. Toda a documentação enviada ao Instituto Nobel pesava 100 quilos. São 183 livros em dez idiomas diferentes, 64 obras assistenciais, com quase 2.000 unidades, fundadas, auxiliadas ou mantidas com os direitos autorais dos mais de nove milhões de exemplares vendidos, direitos por ele transferidos, sem exceção de um só, para essas numerosas instituições, durante os 53 anos de ininterrupto trabalho mediúnico a que continua a entregar-se de corpo e alma, sem que lhe falte tempo também para participar, gratuitamente, de milhares de campanhas beneficentes.
    A respeito de como consegue sobreviver adotando tal procedimento, ele não faz segredo a ninguém. Disse que vive dos proventos de sua aposentadoria como pequeno funcionário do Ministério da Agricultura. Explicou: "Naturalmente, são muitos os amigos que me obsequiam, de maneira tão direta e espontânea, que seria uma ingratidão, por exemplo, desprezar um terno de roupa, uma camisa, um par de meia, um par de sapatos. De modo que vivo muito bem com os meus vencimentos e com os amigos que eu tenho, que graças a Deus são muitos. Não me sinto nem uma pessoa rica, para desperdiçar, nem pobre, para desejar o que é alheio".
    Sobre o Prêmio Nobel, que almejam lhe seja entregue este ano, Chico Xavier assim se pronunciou, falando a uma jornalista de São Paulo: "Consideramos este movimento como uma honraria que os companheiros estão conferindo à Doutrina Espírita (...), embora entre a Doutrina Espírita e Chico Xavier haja uma distância tão grande como a distância entre um talo de erva e o Sol. (...) Para mim, a premiação é esse mundo de amigos que estou recebendo, esse mundo de carinho que está chegando até mim. Não é recompensa, porque não mereço, não fiz coisa alguma para receber uma recompensa dessas. É uma carta de crédito que eu nunca fiz por merecer, mas que me reveste de muita responsabilidade. Quanto ao prêmio, em si, há muitos brasileiros capazes de ir à Noruega recebê-lo e honrar nosso País. Eles terão o nosso aplauso".

    Repórter - Allan Kardec, o codificador da Doutrina dos Espíritos, fez de um aforismo do apóstolo Paulo de Tarso a viga mestra do edifício humano do Espiritismo Cristão: "Fora da Caridade não há Salvação". Salvação para quem? Para o profitente espírita em particular, por gostar de ajudar o próximo com atos de beneficência, ou para o grosso da humanidade, carente de amor e de justiça?

    Chico Xavier - Caro Fenelon, creio que tanto na palavra do Apóstolo Paulo, quanto na expressão de Allan Kardec, o aforismo a que você se refere ficará mais claramente colocado, em linguagem de todos os tempos, nos termos: "Fora do amor não há salvação". Nosso caro Emmanuel muitas vezes nos diz que esse conceito de "salvação", na sentença mencionada, vale por "reparação", "restauração", "refazimento", etc. A propósito, habituamo-nos a dizer, com referência a um navio que superou diversos riscos: "O barco foi salvo...". Ou de homem que se livrou de um incêndio: "O companheiro foi salvo do fogo..." Salvos para quê? Logicamente, para continuarem trabalhando ou sendo úteis. Nessa interpretação justa e salutar, reconhecemos que fora da prática do amor uns pelos outros não seremos salvos das complicações e problemas, tantas vezes criados por nós mesmos, a fim de prosseguirmos em paz, servindo-nos reciprocamente na construção da felicidade que almejamos.

    Repórter - Você não acha que lutar pela implantação definitiva da justiça social entre todos os homens, pugnar intransigentemente em defesa dos direitos humanos em todos os quadrantes da Terra - não seria isso muito mais importante do que a simples dádiva de esmolas, que muitas vezes não passam de migalhas que caem das mesas fartas dos comensais da vida?

    Chico Xavier - Estimaria mais se você dissesse, com o seu nobre discernimento: "trabalhar pela implantação definitiva da justiça social entre todos os homens", porque o verbo lutar, em muitos casos, significaria agitar ou "conflitar". Creio que todos os cristãos sinceros, estejam vinculados à interpretação espírita do Evangelho de Jesus, ou não, permanecem construindo em paz o reinado da justiça no mundo, sem a precipitação dos que se inclinam para transformações violentas e sem a inércia dos apáticos. Relativamente à chamada "esmola", não vejo na migalha de recursos materiais que se dá ou que se recebe um gesto tedioso de quem usufrui mesa farta, e, sim, um elo de simpatia e de amor entre as criaturas que se propõem a encontrar um processo de ligação espiritual entre si, preparando-se instintivamente para mais alta compreensão da fraternidade. Sem qualquer idéia de esnobar esse ou aquele lance autobiográfico, peço permissão para dizer a você que, quando fiquei órfão de mãe, aos cinco janeiros de idade, a distância de meu pai enquanto permaneceu viúvo, aprendi a agradecer às pessoas de coração generoso que me davam um pão ou um prato de alimento, no transcurso do dia, porque quantos me prestaram esse benefício se fizeram para mim benfeitores que me livraram da tentação do furto, é, assim como me sentia feliz em receber essas dádivas para a minha própria sobrevivência, creio que as pessoas que me amparavam também se sentiam satisfeitas com a minha alegria. Reconheço que virá um tempo em que a assistência social velará por nós todos; mas até que isso aconteça, em plano maior (e admito que semelhante realização deverá vir para nós e por nós, sem conflitos sangrentos), até que isso aconteça, repitamos, você aprovaria alguém que vê os seus irmãos em penúria, sem se mover, de modo algum, para auxiliá-los, pelo menos, em pequenina parcela de apoio? Será justo que eu deixe o meu vizinho desfalecendo em necessidade, sem dividir com ele os centavos que posso administrar, a pretexto de aguardar o tempo em que me seria permitido administrar aquilo que não me pertence, esquecendo-me de que posso e devo repartir a parcela de recursos que a Divina Providência me emprestou para meu usofruto?

    Repórter - Fiz-lhe essa pergunta, porque, a meu ver, simples atos de filantropia não passam de gestos pessoais, sem maior profundidade social. Não será aquela caridade burguesa que a Igreja instituiu, no passado, uma caridade dirigida, puro paternalismo, que apenas serviu para adiar um problema que continua a ser universal e urgente?

    Chico Xavier - Compreendo que todos os atos de filantropia são sementes de solidariedade humana que não nos é lícito menosprezar. Sem qualquer idéia de bajulação, acredito que a Igreja Católica sempre fez por nós o melhor que ela conseguiu e continua a fazer o melhor que ela consegue; e se não faz ainda melhor, é que todo o Cristianismo, seja nesse ou naquele setor que o reflete, será sempre a imagem de nós mesmos. Se nos melhoramos individualmente, estaremos elevando todo o grupo a que nos ajustamos. Cremos que a caridade, em nossas áreas sociais, será sempre necessária, em suas demonstrações e vivências, porquanto, de um modo ou de outro, seremos sempre requisitados ao amparo mútuo, ainda mesmo quando tivermos resolvido o problema urgente da educação e da distribuição do trabalho, em nossa vida coletiva.

    ANGELISMO E TRABALHO
    Repórter - Em várias oportunidades você tem dito que Emmanuel, seu Guia e professor, é o mesmo padre Manoel da Nóbrega, o jesuíta que veio de Portugal em companhia dos colonizadores com a missão precípua de aqui plantar a semente do Evangelho. Ora, todos nós sabemos que Emmanuel, quando padre Nóbrega, era um homem inteiramente devotado à religião que abraçara e à causa da Igreja Católica em Portugal e no Brasil. Você, Chico, que hoje o conhece melhor que nós outros, poderia dizer-nos o que ele pensa da atual Igreja, no Brasil, e da sua ação pastoral e social em prol dos deserdados da sociedade?

    Chico Xavier - Caro Fenelon, o nosso respeitado mentor espiritual não me delegou qualquer recurso para defendê-lo, mas, por mim mesmo, não vejo o padre Manoel da Nóbrega, do ponto de vista da História, na condição de um sacerdote inoperante. Certamente, seria ele um homem de Deus, inteiramente voltado para a causa religiosa que abraçara; mas isso não impediu que tivesse vasta ação humanitária na formação original da família brasileira, conforme atestam as petições de recursos para isso, dirigidas por ele ao rei de Portugal, e a atuação decisiva de que participou na criação de núcleos populacionais do País, como, por exemplo, na fundação da cidade que é hoje a capital de são Paulo. Quanto à opinião dele, Emmanuel, sobre a religião na atualidade, diz-nos sempre o nosso Amigo Espiritual que o serviço da fé pode e deve continuar instruindo e consolando, edificando e servindo em nome do Senhor, junto às criaturas. Quanto ao trabalho em favor dos nossos companheiros necessitados ou mais necessitados do que nós mesmos, esse não é um trabalho específico de religiosos e políticos, cuja missão é sempre venerável para nós, mas, sim, obrigação para nós todos, de uns para com os outros, competindo-nos dividir com os nossos irmãos em Humanidade pelo menos algo daquilo que a Divina Providência já nos permite usufruir. Isso não é utopia, é a verdade para a qual caminhamos nós todos.

    Repórter - Houve quem denominasse "Angelismo" a posição imobilista da Igreja Católica antes do Concílio Vaticano II, preocupada, mais, com anjos e arcanjos e com o que pudesse acontecer ao homem depois da morte aqui na Terra. Hoje, porém, a partir da cosmovisão de Teilhard de Chardin, compreendeu a Igreja que o homem deve "assumir o papel de diretor do seu próprio destino" - não só espiritual, mas também social e humano. Que me diz desse novo posicionamento da Igreja?

    Chico Xavier - Sinceramente, seria muito atrevimento da parte deste seu servidor invadir pensamentos e diretrizes da religião que aprendi a respeitar, desde a minha infância. Penso, porém, que, no futuro, os homens cogitarão de se prepararem, em bases de educação raciocinada, sobre o que lhes acontecerá depois da morte no Plano Físico, porque, efetivamente, ninguém vai morrer, no sentido de desaparecer, de vez que nos achamos todos, queiramos ou não, diante de nossa própria imortalidade, além do corpo que usamos atualmente.

    Repórter - Mas por que será, amigo Chico Xavier, que o Espiritismo, no Brasil, herdeiro da mundividência de Pietro Ubaldi, não desce um pouco do Astral, onde se há colocado, e não se volta também para dentro do mundo, "com os pés na Terra", onde há tantos problemas sociais, políticos e antropológicos para serem discutidos, à espera de novas luzes? Lembre-se de que "A Grande Síntese", de Ubaldi, precedeu a "O Fenômeno Humano", de Chardin.

    Chico Xavier - Creio que nós, os espíritas-cristãos, estamos "com os pés na Terra", segundo a sua expressão. Conquanto as deficiências pessoais de que possamos ser portadores, todos nos reconhecemos interessados em nossa própria melhoria interior, tentando, concomitantemente, doar a nossa colaboração nas iniciativas que visem ao progresso e à assistência, em nossa vida comunitária. Se posso, no entanto, sintetizar o meu pensamento pessoal, no assunto, direi a você, que, na condição de espírita-cristão, eu não me sentiria capaz de solicitar a um político, somente porque se tratasse de um político, somente porque se tratasse de um político e meu amigo, para assumir a direção do centro espírita a que me visse vinculado, tanto quanto, reconhecendo, conscientemente, a pequenez de meu lugar na mediunidade e na Doutrina Espírita, nunca esperaria que um político meu amigo me convidasse para legislar, em companhia dele, sobre os altos problemas da comunidade, simplesmente porque eu seja o médium imperfeito que ainda sou e o espírita necessitado da caridade e do entendimento dos meus irmãos de fé.

    CRISTIANISMO REDIVIVO
    Repórter - É fora de dúvida que o Espiritismo, até bem pouco tempo, era manifestação religiosa que possuía em alto grau - mais que a macumba - o sentido exato do catolicismo popular, como expressão, portanto, de um comportamento religioso dos pobres. Pergunto: Com as modificações que a Igreja está adotando, particularmente os grupos que defendem a "Teologia da Libertação", não estará o Espiritismo perdendo a sua condição de "religião dos pobres", exatamente em virtude de sua postura um tanto niilista, em confronto com a ebulição dos grupos católicos?

    Chico Xavier - Caro amigo, já que estou respondendo as suas perguntas por mim mesmo, não me sinto com o direito de examinar essa ou aquela atitude da Igreja Católica, em cuja venerável presença sinto pulsar o coração materno da nossa fé cristã, sejam quais sejam as interpretações do Evangelho de Jesus que aceitemos no Brasil. À Igreja Católica dedico o meu respeito, sem compartilhar-lhe da militância, na atualidade. Será, talvez, por isso que, entregue às tarefas da mediunidade, na doutrina Espírita, qual me vejo há muito tempo, não conheço o movimento que você nomeia por "Teologia da Libertação". Dentro de sua pergunta, posso apenas dizer-lhe que considero a Doutrina Espírita, na face religiosa, na condição de Cristianismo Redivivo, acessível a todos, sem distinção de faixas sociais. Com este esclarecimento, permitir-me-á você que me recorde do ensinamento de Jesus: "Conhecereis a Verdade, e a Verdade vos fará livres", acentuando que na teologia simples do Evangelho temos nós todos, os cristãos, o enunciado inesquecível dos princípios divinos: "A cada um, segundo as suas obras".

    Repórter - Tratando o fio do meu pensamento anterior, e completando-o, insisto: se Astralismo foi a doença infantil do Espiritismo, segundo o conceito do espírita mineiro Noronha Filho, como o Angelismo a dos católicos, não acha você que os tempos são mudados e já estamos suficientemente maduros para construirmos, por nós mesmos, a Civilização do Terceiro Milênio?

    Chico Xavier - Peço o seu consentimento para esclarecer que não vejo puro "Astralismo" no Espiritismo, de vez que nós todos, os espíritas-cristãos, nos reconhecemos com trabalho incessante, neste mundo mesmo, atentos como devemos estar ao serviço da sustentação de nossos grupos domésticos, qual acontece a quaisquer pessoas que prezem conscientemente as suas obrigações próprias, e as tarefas, muitas vezes, pesadas e sacrificiais, de apoio e manutenção das instituições assistenciais diversas que nos vinculam à melhoria de nossa vida comunitária. Quanto à parte final de sua pergunta, a sua bondade me permitirá dizer que, em face de minha pequenez, reconheço que, para mim, em nossos tempos, "devo estar suficientemente maduro para construir a mim mesmo", conforme as instruções de Jesus, ante as perspectivas do Terceiro Milênio, considerando-se que, mesmo na condição de espírito desencarnado, precisarei enfrentar semelhantes perspectivas. No entanto, confesso a você que ainda estou lutando - e muito - a fim de colocar as construções de minha vida íntima em nível dos conhecimentos que os Benfeitores Espirituais, por imensa bondade, me ofertaram, através dos livros e das mensagens que escrevem por minhas mãos. Sinto-me em luta comigo mesmo, luta essa que defino com estas palavras: Sei o que devo ser e ainda não sou, mas rendo graças a Deus por estar trabalhando, embora lentamente, por dentro de mim próprio, para chegar, um dia, a ser o que devo.

    O CAMINHO DA PAZ
    Repórter - A seu ver, qual o caminho que pode levar as nações a um entendimento satisfatório, e, conseqüentemente, à uma paz duradoura?

    Chico Xavier - Creio que quando cada um de nós estiver cumprindo os deveres que nos competem, perante Deus e diante da vida, à frente dos outros e ante a nossa própria consciência, alcançaremos a paz duradoura. Sobre essa questão de solucionarmos os grandes problemas da comunidade, na base do esforço ou do sacrifício possíveis a cada um, temos o exemplo inesquecível do Ceará, na abolição do cativeiro em nosso País. Há, mais ou menos, um século, segundo acredito, o jangadeiro Francisco José do Nascimento, revoltado contra a escravidão, gritou na praia de Fortaleza: "Em minha jangada não mais aceitarei escravo algum, nem de bordo para a terra e nem de terra para bordo". Outros jangadeiros, todos eles brasileiros simples e profundamente humanos, seguiram-lhe as normas. Naturalmente sofreram eles prejuízos consideráveis, abstendo-se de angariar ou aceitar fretes que lhes eram necessários à subsistência, mas sustentaram a própria palavra e a abolição na Província do Ceará começou com o exemplo dos humildes, conquistando corações em todas as classes sociais. Quando José do Patrocínio visitou a cidade de Fortaleza, em 1882, já encontrou clima perfeito destinado a basear a libertação dos nossos irmãos cativos. Todo o Ceará já possuía nobres figuras de homens dignos empenhados à libertação dos nossos irmãos cativos, mas comoveu-se toda a Fortaleza com a pregação do admirável abolicionista. E os frutos da sementeira de Francisco José do Nascimento começaram a surgir. Se não me engano, em princípios de 1882, o município cearense de Acarape alforriou todos os seus escravos, demonstrando a repulsa da Província ao cultivo delituoso da servidão humana. Depois de Acarape, São Francisco e Pacatuba fizeram o mesmo. Depois do exemplo de Sobral, libertando, espontaneamente, cento e dezessete escravos, a abolição em toda a Província do Ceará se fez muito antes do Decreto de maio de 1888, que declarou extinta a escravidão no País. Conforme verificamos, os dignos brasileiros do Ceará liquidaram o cativeiro, à custa deles mesmos. Não pediram dinheiro emprestado a ninguém e nem convidaram outras províncias a se tumultuarem, a fim de acompanhá-los; não pregaram a subversão contra as leis do Império e nem aconselharam a desordem coletiva, a favor dos ideais de humanidade em que se inspiravam. Fazendeiros ou não, proprietários ou não, os nossos irmãos cearenses preferiram o próprio sacrifício. Não hesitaram em ferir os próprios interesses e em diminuir as posses deles mesmos, mas repartiram com os nossos irmãos cativos, mais do que o pão e as vantagens que lhes pertenciam, e sim a própria liberdade, ensinando ao Brasil inteiro, sem influências externas, que a liberdade de trabalhar para garantir os seus próprios caminhos é um dom de Deus para todas as criaturas humanas. Creia você que não faço essas referências por bajulação ao nobre Estado do Ceará, onde a Divina Providência me concedeu tantos amigos generosos e dedicados, mas porque, em se falando de entendimento entre comunidades e paz duradoura, não acredito que essas conquistas venham até nós por medidas de força ou através de movimentos compulsivos do relho verbal e, sim, à custa de nosso próprio suor, esforço, diligência e sacrifício, na compreensão e no auxílio de uns para com os outros, qual aconteceu com os cearenses unidos e livres do cativeiro, muito antes de surgir na capital do Império o decreto que extinguiu a escravidão em nosso País.

    Repórter - Se lhe fosse solicitada uma sugestão, que aconselharia você às Nações Unidas, como medida prática para evitar as guerras futuras?

    Chico Xavier - A sua bondade superestima demasiado a minha desvalia manifesta. Se eu me atrevesse a responder a sua indagação, no sentido com que você a formula, reconhecer-me-ia, em verdade, na posição de uma formiguinha que se decidisse, indebitamente, a opinar em assuntos que competem a uma assembléia de sábios, com os quais a pobre formiga nada tem a ver.

    Repórter - Que mensagem você gostaria de aqui deixar para os iniciadores da construção do Terceiro Milênio?

    Chico Xavier - Prezado amigo, se eu dispusesse de autoridade, rogaria aos homens que estão arquitetando a construção do Terceiro Milênio, para colocarem no portal da Nova Era as inolvidáveis palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo: "Amai-vos uns aos outros como eu vos amei".

    Infância
    Uma infância dura, cheia de dificuldades e trabalho. Assim foi a infância de Francisco Cândido Xavier, nascido em 2 de abril de 1910, na cidadezinha de Pedro Leopoldo, em Minas Gerais. Aos cinco anos perdeu a mãe. Vendo-se sozinho e sem meios para cuidar dos nove filhos, seu pai resolveu distribuí-los entre amigos e parentes. Chico foi, então, morar com dona Rita, sua madrinha - pessoa geniosa, que chegava a ser cruel com quem a desagradava.

    Primeira vez
    Com saudades da mãe - que não sabia estar morta - sempre que a madrinha saía Chico Xavier corria ao fundo do quintal para chorar as mágoas. Ali, passou pela primeira experiência mediúnica. Ao ouvir um barulho, olhou naquela direção e viu a mãe. A imagem era tão nítida que pensou que ela viera buscá-lo. Sem dizer que estava morta, a mãe pediu-lhe paciência. Xavier ficou com a madrinha durante dois anos. Seu pai casou-se novamente e a madrasta recolheu os filhos do primeiro casamento e acabou de criá-los.

    Menção honrosa
    Na escola, ele não deixou de ter ajuda espiritual. No primeiro centenário da Independência do Brasil, as crianças do curso primário tinham de apresentar um trabalho sobre o tema. Quando ia começar a composição, Chico viu a seu lado um homem que lhe ditava o que deveria escrever. Chico obedeceu e ganhou o prêmio - uma menção honrosa.

    Agressão e preconceito
    Na infância e na adolescência, quando inclusive o problema de visão no olho esquerdo já se mostrava evidente (foto), Chico sofreu todos os tipos de agressão e preconceitos nas mãos da família, padres e vizinhos. Todos viam nas suas manifestações mediúnicas apenas uma "coisa do diabo". Apesar disso, passou a estudar os livros de Allan Kardec e o espiritismo. Assim, sua mediunidade foi aos poucos passando por um processo de depuração.

    Polêmica
    Com apenas o primeiro ano primário, Chico Xavier publicou, em 1932, o seu primeiro livro, Parnaso do Além-Túmulo, com 259 poemas de 56 diferentes autores. Todos mortos. Esse foi o início das discussões em torno de Chico Xavier. Parnaso trazia poemas de nomes como Augusto dos Anjos, Casemiro de Abreu e Castro Alves. A polêmica redobrou em 37, já no seu quarto livro: Crônicas do Alem-Túmulo, atribuído ao espírito de Humberto de Campos, romancista e ensaísta morto apenas três anos antes.

    Livros
    Chico Xavier publicou quase 400 livros, atribuídos aos espíritos de vários autores. O seu maior sucesso foi Nosso Lar, que chegou a vender 1 milhão de exemplares. Há poucos anos, o escritor Luciano da Costa e Silva publicou Nosso Amigo Chico Xavier, resultado de uma pesquisa de 30 anos sobre a vida e a obra do médium. A obra narra fotos curiosos e pesquisas científicas sobre o espírita mineiro, abrangendo desde a infância em Pedro Leopoldo à indicação ao Nobel da Paz, em 1981.

    Charlatão?
    Chico Xavier chegou a ser considerado um charlatão por muita gente. A acusação maior é que o médium teria "imitado" o estilo dos autores psicografados. Porém, há muitos também que rebatem as acusações. Luciano da Costa e Silva, por exemplo, diz que seriam necessários pelo menos 60 dias e noites de leitura sobre as obras de cada autor para "assimilar" sua maneira de escrever. Para imitar o estilo dos 600 autores já psicografados, diz, Chico, que só tem o primário, precisaria no mínimo de cem anos de leitura.

    Filantropo
    Há alguns anos, seu filho adotivo, Eurípedes Higino disse que, se recebesse direitos autorais por seus quase 400 livros publicados em vários países, Chico Xavier teria uma fortuna calculada em mais de US$ 20 milhões. Como nunca recebeu esse dinheiro, suas posses se resumem a uma casa em Uberaba (MG), onde vive. Os US$ 20 milhões - se é que a conta está certa - foram destinados a obras sociais. O seu trabalho filantrópico é reconhecido como uma demonstração de caridade e renúncia.

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